Todas as crises têm os seus sinais precursores. Em 2007, o sinal foi dado com a falência da empresa New Century, uma empresa ligada ao crédito imobiliário, que foi a origem da crise; depois, o Bear Stearns fechou 2 fundos; seguidamente, o Northern Rock faliu; o mesmo fez a Bear Stearns; e, finalmente, o banco de investimento Lehman Brothers abriu igualmente falência: a imagem que simbolizou toda essa crise.
Com a crise do Nasdaq no início do presente milénio, os sinais precursores estiveram ligados a fraudes contabilísticas; que foram iniciadas com a empresa Microstrategy, através do empolamento artificial dos seus resultados; depois foi a Enron – então um gigante do mercado de energia -, que seguia as mesmas práticas e que levou ao fecho da Arthur Anderson, uma das maiores auditoras à época; na mesma altura, a Worldcom, uma das maiores empresas de telecomunicações, que à semelhança de casos anteriores, também inflacionava os seus resultados, abriu falência.
Ambas situações sobreditas levaram a nova legislação e mais regulação.
Em plena pandemia, parece que temos os novos sinais precursores da próxima crise: chamam-se Archegos e Greensill.
Já se conhece o fio condutor: alavancagem, em virtude da procura incessante por retorno do investimento, num mundo moldado pela repressão financeira, através de taxas de juro 0% decretadas pelos bancos centrais.
Porque são sinais precursores?
Pela simples razão de que bancos como o japonês Nomura ou o suíço Credit Suisse afirmam ser prematuro quantificar perdas; dado que estas estão associadas a instrumentos financeiros derivados.
Dependendo da complexidade, pressupõe que a alavancagem ou a estruturação legal e financeira destes produtos dificultam o cálculo das perdas; pressupõe-se que partes destas perdas estarão ligadas à actividade que se define por banca sombra (Shadow Banking), ou seja, encontram-se fora do balanço dos bancos e do perímetro da regulação.
Apesar da regulação, e do crescente exército de técnicos de controlo interno – com enormes custos para estas instituições -, que actuam em áreas como risco, compliance, auditoria interna, revisão de contas, branqueamento de capitais, fiscalização, a realidade é que não parece ser solução para evitar estes problemas, porque existe um tema que se sobrepõe a tudo isto: o lucro.
Esse tema é fulcral nas grandes instituições ‘’too big to fail’’ (demasiado grandes para falir), porque sustenta todo o sistema financeiro no seu conjunto e a economia.
Claro que a noção de lucro está presente a múltiplos níveis, inclui o nível dos salários que representa o ganho dos colaboradores, nos incentivos variáveis, como bónus, que beneficiam colaboradores e alta direcção, e finalmente o lucro propriamente dito para estas empresas que, por serem demasiado grandes, já não são de ninguém.
Como tal, fazem parte de uma teia complexa de investidores institucionais que representam indirectamente muitos pequenos investidores, como fundos de pensões ou de investimento.
Foi a procura de um maior retorno do investimento aquilo que levou o banco Credit Suisse, o banco Nomura e outros a perdas com a Archegos: não houve nada de perverso nisso.
Perverso seria não procurar obter maior retorno, o verdadeiro problema, que pode ser um sinal precursor de algo mais significativo, relacionado com a alavancagem financeira, problema que suspeitamos esteja a ser marinado desde 2013, conforme sinais já identificados no meu artigo “Swaps, Chipre e Liberdade”.
Sabemos por dados do BIS que os derivados têm um valor nocional que corresponde a 10 vezes o PIB mundial, sabemos que esse já era em 2008 o verdadeiro problema. Sabemos que as alterações regulamentares, no seguimento da crise de 2008, foram nesse sentido, levando à criação de repositórios de derivados que são uma espécie de câmaras de compensação.
O problema é que em vez de apenas obrigar a dezena de grandes instituições que representam 90% deste problema, obrigou-se todos os operadores de retalho a informar as operações efectuadas por investidores e clientes e criaram-se derrogações especiais para estas instituições, devido à complexidade do problema.
Sabe-se agora que a Archegos (um Family Office) não foi titular de nenhum título em bolsa neste processo; ou seja, em nenhum momento foram proprietários de acções, fundos ou obrigações. As suas operações foram concretizadas inteiramente através de derivados, nomeadamente em TRS (Total Return Swaps), que basicamente são a mesma coisa que um CFD, mas com outro nome e não estandardizado.
As razões para a escolha deste produto por parte da Archegos derivam da não obrigatoriedade de informar o supervisor do mercado de capitais norte-americano, a SEC, do montante da sua exposição ao mercado.
A intenção dos bancos que venderam os TRS, ou seja, contrapartes da Archegos para este instrumento, era fazer negócio, cobrando juros sobre a alavancagem e gerir o risco das posições abertas pela Archegos. Para aqueles que não estão familiarizados com este tipo de coisas, o gestor de risco do banco define a alavancagem concedida no instrumento financeiro, define depois o rácio de cobertura da exposição do banco.
Imagine que concedeu 10 vezes em alavancagem. Assim, vamos supor que a Archegos deseja expor-se a 1.000 Euros da acção XYZ, que está a cotar a 1 Euro por título, visando ganhar com a subida da cotação (posição longa).
Ou seja, se o preço subir de 1 Euro para 2 Euros, a Archegos receberá do banco 1.000 Euros, se o preço descer de 1 Euro para 0,5 Euros (50 cêntimos), a Archegos deverá pagar ao banco 500 Euros.
Que atitude poderá ter o banco?
Este ponto é muito importante: a grande maioria dos participantes no mercado, reguladores e compliances incluídos, não sabem que o risco não pode ser eliminado, só pode ser transferido, ou assumido, se essa for a decisão tomada.
A grande maioria das noticias sobre o caso Archegos tem enfoque sobre a enorme alavancagem que a sociedade e o seu gestor assumiram, (10 vezes), existindo muito menos preocupação com os bancos, cuja alavancagem tem uma designação diferente: o famoso Tier1, que não pode baixar dos míticos 5%; ou seja 20 vezes.
Esta questão da alavancagem é transversal a toda a economia, mas tem designações diferentes e abordagens diferentes.
Por exemplo, nos Bancos Centrais, o nível de discussão sobre a alavancagem situa-se em saber se os bancos centrais precisam de capital, um tipo de discussão ainda mais técnica que aquela relacionada com o Tier1 dos bancos e, como tal, reservada aqueles que têm interesse em questões de semântica e paciência.
E este é o verdadeiro perigo do sistema monetário em que estamos inseridos, porque ele é, com mais ou menos regulação, um esquema em pirâmide, em permanente expansão, que precisa, como todo o esquema em pirâmide, de não ter limite na sua expansão.
Ora, é justamente isso que o actual sistema monetário e financeiro, por enquanto, permite com o seu modelo fraccionário, com a sua alavancagem e a utilização de derivados.
É também a razão pela qual tudo parece estar em causa, com o constante aumento de regulação, que dá a impressão que é possível ter um sistema financeiro infalível.
Ora esta impressão, tem pelo menos três problemas: o primeiro é que ter um sistema financeiro sem falências, seria o mesmo que ter o Cristianismo sem Inferno, logo impossível; o segundo, é que uma grande maioria dos participantes baixa as suas defesas, porque está convencido que o sistema está realmente protegido; e terceiro, e último, é que a regulação, com a sua metodologia em camadas, inviabiliza que haja alguém na empresa com uma visão global e, como tal, com uma maior noção do verdadeiro risco implícito.
Como é sabido, não existe diferença regulatória entre as empresas de investimento e os grandes bancos comerciais, mas existe na actividade funcional destas empresas uma grande diferença em termos práticos: com as empresas de investimento, as perdas são imediatas e automaticamente calculadas, porque o modelo de negócio é mais simples; já no sistema bancário, tudo é mais opaco e as perdas são tão mais difíceis de se apurar quanto maior for o banco.
O curioso deste tema é que os derivados já foram assunto regulado depois da crise de 2008, como referimos. Em 2012, foi criado um regulamento Europeu designado de EMIR, que estabelece: a obrigatoriedade dos contratos derivados negociados fora do mercado passar a ser reportada a uma contraparte central; a criação do código LEI, para identificar todas as empresas que fazem transacções em derivados.
O resultado prático foi que pequenos intermediários financeiros que não produzem derivados e apenas os comercializam, transmitindo ordens que outros intermediários também têm que reportar, passaram a ter um custo adicional inerente para algo em que não podem ter responsabilidades, para além de eventualmente serem vítimas.
As empresas de qualquer tipo, como por exemplo uma sapataria Covid Lda, que tenha uma conta de corretagem para negociar derivados junto de um intermediário financeiro, também passou a ter que informar – na realidade, efectuado pela corretora contratada -, reporte esse que está associado ao seu código LEI (obtido anualmente com um custo de 100 euros) e a ter um custo de supervisão, imposto pelo regulador, de pelo menos 500 euros ao ano ou de 2000 euros, dependendo do número de transacções.
O regulador naturalmente faz o seu trabalho de supervisão e, para além de cobrar, pretende saber qual é o repositório de transacções escolhido para reporte, quais os procedimentos existentes para certificar a qualidade da informação reportada, o número de reportes efectuados, os rejeitados, os não reconciliados, e os posteriormente corrigidos; enfim, um trabalho burocrático importante, que como se pode verificar com a Archego não foi de muita utilidade!
—
Em termos práticos, esta legislação serviu para tornar mais cara a negociação com derivados e criar custos que não existiam para as empresas que utilizam estes instrumentos financeiros. Ao mesmo tempo, foi possível manter 100 mil milhões de posições em derivados TRS, sem que o regulador norte-americano tivesse alguma vez conhecimento dos mesmos.
Os bancos ‘’too big to fail’’ utilizaram uma das muitas facilidades que foram introduzidas nesta legislação, por forma a evitar informar a supervisão, como por exemplo as isenções que foram permitidas nas transacções intragrupo. Em conclusão: no futuro, vão aparecer mais esqueletos no armário?
—
Mas esse nem é, como agora se perceberá, o problema, porque a conclusão principal é que apesar de termos a regulação mais cara da história e a maior concentração de dados junto dos reguladores, a realidade é que o conjunto das medidas não garante a inviabilização de uma nova crise como tínhamos escrito em 2018 e agora ficou demonstrado com o caso Archego e também com o caso Greensil.
O reporte dos dados por si não previne nenhuma crise. Existem 3 tipos de participantes nos mercados: os demasiado grandes, os espertos ou inteligentes e os trapaceiros.
—
Para os reguladores e opinião publica todos são trapaceiros provavelmente pela carga politica e social que o sector carrega.
O sistema capitalista do seculo XX estava baseado no lucro e na acumulação, era imperfeito obviamente, tinha menos regulação e teve a crise de 1929, a de 1987 e a de 1998 com a falência do hedge fund LTCM que tinha 2 prémios Nobel na sua gestão.
O sistema creditista (palavra inventada que significa baseada no crédito) do seculo XXI, recusa ser aquilo que é, ou seja um sistema baseado no lucro, e faz tudo para o ocultar.
Como? Com taxas de juro negativas, com conceitos de redistribuição que implicam maior endividamento, com constante aumento de regulação e no entanto já teve a crise do Nasdaq do inicio do século, a crise de 2008 e o espirro pandémico de 2020.
A intenção é sempre prevenir uma crise de liquidez na economia, o resultado desta politica é um excesso de capital e lucros insuficientes para o rentabilizar, e com isso o principio de um circulo vicioso que leva a que haja cada vez mais capital, e lucros cada vez mais insuficientes para o rentabilizar e são esses os sinais precursores de nova crise.
Tendo em conta que o estado também procura aumentar os seus resultados através de impostos e baixando os custos financeiros do seu endividamento, e as empresas só podem aumentar as suas margens fazendo pressão sobre os salários e aumentando os preços sempre que a concorrência assim o permita.
O resultado é um conflito desesperado de interesses entre empresas privadas e estado para rentabilizar os lucros.
Veja também: