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Ensaio sobre a dívida (parte 2)

Uma expressão muito utilizada hoje em dia especialmente pelos jovens é: “Queres que seja sincero?”. Muito provavelmente tem origem na influência anglo saxónica e na expressão ‘’to be honest’’. Esta expressão é um sinal dos tempos e, seja de forma consciente ou inconsciente, revela o reconhecimento de pouca clareza e transparência no relacionamento pessoal e profissional e é também evidente no universo da política.

O aumento exponencial da dívida é um dos temas com pouca transparência e acabará por criar incerteza junto daqueles que têm capacidade de aforro e de investimento. Alguns sinais desta incerteza estão no montante de dívida actual com remuneração negativa, um autentico palavrão porque se é remuneração não deveria ser negativa. O ‘Financial Times’ diz que 3,6 triliões de dívida soberana estão nessa situação. Os investidores pagam para ter o dinheiro nessas obrigações em vez de receberem, uma situação de todo anormal, porque apesar de taxas baixas as emissões ainda são feitas com uma taxa de juro, o que prova que a incerteza leva os investidores a pagar quem lhes oferece maior confiança.

A anormalidade desta situação de remunerações negativas é agora quase generalizada no sistema financeiro. Começou com os Bancos Centrais a penalizarem os depósitos feitos pelos bancos comerciais, seguiu-se com os bancos comerciais a cobrarem pelo dinheiro depositado pelos clientes e, finalmente, já existem casos na Dinamarca em que pessoas com empréstimos à habitação recebem dinheiro da taxa negativa em vez de pagarem.

Esta situação absurda é um incentivo para que as famílias gastem em vez de pouparem, mas pode representar também o fim do sistema monetário, porque o absurdo tem tendência a alastrar-se rapidamente. Por exemplo, algumas obrigações da Nestlé têm taxas de juro negativas de 0,51%, ou seja, os investidores estão na disposição de pagar 0,51% para terem o privilégio de possuírem o seu dinheiro em dívida da Nestlé. Isto não é um sinal de confiança no sistema e demonstra que a criação de moeda pelos Bancos Centrais não cria crescimento económico. Na realidade porque haveria de criar quando já existe excesso de capacidade instalada?

Estamos certos que a intenção desta criação de dinheiro por parte dos Bancos Centrais é fazer com que o dinheiro seja aplicado em pequenas e médias empresas, mas o risco leva os investidores institucionais e refugiarem-se nas empresas grandes demais para falirem.

As obrigações Portuguesas a 10 anos pagam agora 2.02%  e as Espanholas 1.42%. A dívida americana com a mesma duração paga 2.04%. A questão que se deve colocar aqui é se se justificam estes prémios de risco para estas diferentes realidades? Este é o resultado do que dissemos acima que, pela primeira vez os Bancos Centrais dos países desenvolvidos estão a recomprar mais de 100% da dívida emitida e essa é a razão pela qual as taxas estão distorcidas e em níveis que tornam incalculável o prémio de risco.

A consequência imediata desta distorção é a valorização do Dólar Americano, ainda a maior economia do mundo, mas ao mesmo tempo o maior devedor do mundo, com os maiores mercados do mundo, nomeadamente os mercados de dívida, aqueles que interessam para este tema, porque os investidores institucionais precisam de mercados com dimensão suficiente para que possam entrar e sair sem receios de liquidez. A liquidez é, no entanto, um tema mais falível como ficou demonstrado com a crise de 2008, quando o mercado interbancário deixou de funcionar por falta de confiança. Para efeitos deste ensaio a dimensão dos mercados é o factor importante no pressuposto de que tudo funciona normalmente.

A moderna teoria financeira impõe que a dívida soberana seja o activo mais seguro no sistema financeiro. E a razão para tal é que, como vimos acima, é muito mais fácil uma empresa falir que um País. O resultado é que o sistema financeiro utiliza essencialmente como colateral dívida soberana independentemente da qualidade dessa mesma dívida, e é esse mesmo colateral que garante o exorbitante montante de derivados que representa actualmente 10 vezes o PIB mundial. Apesar da dimensão dos mercados, apesar da liquidez, o aumento da alavancagem do colateral utilizado (dívida pública) é o factor a ter em preocupação. Se antes 1 euro de colateral garantia 10 euros de negócio, agora garantem 20 ou 30 ou até mais euros de negócio.
O facto de os Bancos Centrais estarem a comprar dívida soberana diminui o ‘stock’ de dívida disponível para os bancos, criando potencialmente novas fissuras no sistema. O problema da dívida tem este carácter infeccioso que parece atacar todo o sistema financeiro, surgindo em diferentes locais sempre que se ataca o problema anterior.

O Japão é um bom exemplo do que estamos a pretender demonstrar, porque está mais avançado no processo de declínio, manietado que está pelo problema da dívida. O Japão utilizou dívida ao longo dos últimos 20 anos para levar o país para o top dos países mais endividados do mundo relativamente ao seu PIB, mais exactamente 245%. Comparativamente, a Grécia tem um rácio de endividamento de 188%. O Japão já está numa situação em que, apesar de ser a terceira economia mundial, até o FMI já alertou para o perigo que o país enfrenta com uma pequeníssima subida dos juros.

Os bancos no Japão têm em carteira 900% do seu ‘Tier1’, capital em obrigações soberanas japonesas, com uma remuneração corrente de 0,40%. Estas carteiras serão tecnicamente dizimadas se as taxas atingirem os 2% porque as menos-valias implícitas farão colapsar o sistema bancário Japonês. Imaginamos que se essa fosse a situação outras soluções contabilísticas teriam que ser criadas para manter o ‘Tier1’ dos bancos.

Mas vejamos agora porque podem as taxas vir a subir. O montante de dívida soberana Japonesa corresponde a 23 vezes o montante de colecta anual de impostos, um montante significativo que corresponde já a uma situação de insolvência. O aumento de 1% na taxa equivaleria a 255 vezes a colecta de impostos. O Japão tem todas as condições para se tornar no epicentro de uma nova crise financeira.

Vejamos agora o papel do Banco Central neste tema e como é criado o dinheiro. O Estado Japonês emite dívida sob a forma de obrigações com um valor facial e uma taxa de juro. Estas obrigações são normalmente compradas por bancos e o dinheiro dá entrada nos cofres do Estado para ser gasto. Estas obrigações são compradas com dinheiro que já existe nos bancos, mas o dinheiro é literalmente criado do nada quando o Banco Central aceita de garantia essas obrigações do Estado apresentadas pelo banco comercial e recebe em troca o contravalor em dinheiro. Nesse preciso momento em que o dinheiro é transferido para a conta do banco comercial, pode-se dizer que esse dinheiro vem literalmente do ar.

Recorde-se que quando qualquer um de nós passa um cheque isso tem que ser feito de uma conta com dinheiro, mas quando o banco central emite um cheque não tem que ter dinheiro na conta, está a criar dinheiro. Pela forma como estas operações são feitas pode-se dizer que todo o dinheiro existente está garantido por dívida, dívida essa que paga juros todos os anos pelo que tem que ser criado novo dinheiro para pelo menos pagar os juros. Este sistema foi criado para crescer exponencialmente, sobre isto não existe dúvida alguma.

A grande dúvida é perceber que razão levou os Bancos Centrais a decidirem agora comprar um montante superior à dívida emitida pelos Estados com o intuito de a guardar com o tal dinheiro criado do ar. Afinal de contas essa dívida já está a preços muito altos tendo em consideração que as taxas estão em mínimos históricos. A dívida é uma posição contratual que permite um empréstimo com pagamento futuro com… juros. Qual a lógica e a moralidade de ter o Estado a gastar, por um lado, e o Banco Central influenciado pelo Governo desse Estado a comprar, pelo outro? Como seria o mundo se as pessoas pudessem gastar pedindo emprestado e ao mesmo tempo pudessem imprimir o dinheiro que tinham gasto para pagar esse empréstimo?

Certo é que a actual estratégia dos Bancos Centrais não tem como objectivo reduzir a base monetária, porque não têm nenhuma intenção de colocar novamente esses títulos no mercado, nem aliás nenhuma possibilidade de o fazer sem criar um enorme ‘crash’ no mercado das obrigações. Cerca de 25% da dívida soberana está agora nos Bancos Centrais. No Japão cerca de 50% da dívida já se encontra no respectivo Banco Central.

Os Bancos Centrais só podem estar a fazer isto porque esta é a forma que os Governos ocidentais têm para pagar as dívidas, imprimir dinheiro para criar inflação para desvalorizar o dinheiro. Os Bancos Centrais estão assim sem rodeios ao serviço da banca e dos governos, para tentar sair da actual situação que é problemática. Infelizmente para todos os outros endividados só existem duas maneiras de se sair de um contrato de dívida: pagando ou incumprindo.

O crescimento permanente é assim o requisito do actual modelo económico: temos que vender mais carros, mais casas, mais tudo e produzir mais. Já vimos que este crescimento é linear enquanto o crescimento de dívida é exponencial. Se o futuro não for maior que o presente, uma de duas coisas terá que acontecer, a dívida tem de ser reduzida ou por incumprimento ou por aumento da inflação. Os Bancos Centrais estão a tentar a 2ª via, a da inflação com a criação de dinheiro.

O último QE (Quantitative Easing, jargão para criar dinheiro) Europeu é de 1,1 triliões de euros. Vejamos o que representa este montante de dinheiro em notas para se ter uma noção mais exacta do montante em causa. Em notas de 500 euros empilhadas corresponde a 242 km de notas. Os QE Americanos totalizaram 3,7 triliões e como a maior nota é a de 100 dólares são necessários maços de 1,100 km por cada trilião de dólares.

É mais perceptível desta forma ver que a criação de dinheiro é inversamente proporcional ao valor desse mesmo dinheiro. Para os que pensam na segurança das suas reformas devem entender que os seus descontos valem ao longo de 40 anos gradualmente menos e depois de entrado na reforma enfrentam o problema contrário, ou seja, cada ano se tornará mais difícil porque perde poder de compra, tudo por causa da dívida e da necessidade de a eliminar por via da inflação.
Os fundos de pensões têm outro problema. Como as responsabilidades das pensões são essencialmente responsabilidades futuras, as responsabilidades actuais são calculadas aplicando uma taxa de desconto ao que será devido no futuro. Com as taxas de juro a 0, todo o sistema de pensões precisa de mais dinheiro para assumir as mesmas responsabilidades futuras, porque a remuneração do fundo sendo inferior, será mais lenta. O princípio é simples, é preciso poupar o dobro se temos uma expectativa de 3% de valorização sobre um investimento num fundo para um montante futuro, do que pouparíamos se tivéssemos uma taxa de valorização prevista de 6%. A total manipulação da taxa de juro pelos Bancos Centrais e as taxas negativas em activos percebidos sem risco são a garantia de uma situação insustentável para qualquer estado social.

Chegados aqui será o momento de falar um pouco sobre questões morais. Porque se uns se devem preocupar com a dívida e outros não, parece haver pouca moralidade. Se uns podem utilizar o Banco Central em benefício de alguns e outros não é pouco ético, sobretudo tendo em consideração que entre Estado e sistema financeiro os beneficiários parecem ser uma elite em detrimento da população em geral. Muita gente pensa que compete aos governos resolver estes problemas, mas os governos têm manifestos conflitos de interesses no que toca à banca, por variadíssimas razões:
1-      Porque são devedores da banca e ao mesmo tempo reguladores do sistema bancário.
2-      Porque distribuem prejuízos na eventualidade de falências bancárias mas necessitam do apoio político dos depositantes.
3-      Porque emitem dívida soberana e precisam do suporte político dos bancos para essa dívida.
Isto implica uma parceria implícita entre bancos e governos, e esta parceria também regula o crédito a própria competição no mercado e até os termos em que opera.

Na base destas questões morais existe algo que na aparência parece atingir todos por igual. Hoje quando uma família compra uma casa ou um carro fá-lo a crédito. Para as famílias como para os Estados o importante não é o dinheiro que têm mas o crédito que podem ter, e se conseguem depois manter os ‘cash-flows’ necessários para manter os seus montantes de dívida sempre crescentes. Para os Estados esses ‘cash-flows’ vêm dos impostos, para as famílias dos eventuais aumentos de salários. Tal como os Estados as famílias ao longo dos últimos 40 anos conseguiram obter muito mais crédito por cada euro ganho, o que compensou largamente o aumento muito mais moderado do valor dos salários.